A partir desse título multivocal, nós buscamos analisar os sujeitos, processos sociais e práticas representacionais que os projetos de justiça transicional — como as Comissões de Verdade e Reconciliação —, tanto oficiais quanto não oficiais, deixaram em seu rastro. Uma geração depois das primeiras Comissões de Verdade e Reconciliação (CVR) da América Latina, e depois de décadas de contínuo ativismo, reflexão crítica e intervenção artística em torno da política da memória, esse número investiga o status da "verdade" que esses projetos buscaram e produziram. No seu ensaio para este número, Allen Feldman propõe o termo "traumatropo" para dar nome às formações da memória que se seguem aos conflitos históricos. Emprestando o termo da botânica, onde "traumatropismo" se refere ao "encurvamento reativo de uma planta ou organismo como consequência de uma ferida anterior", Feldman sugere que comunidades inteiras são capazes de "reorganizar suas identidades, histórias e projetos em torno da curvatura de uma ferida histórica prévia." Neste número, nós investigamos o que ele chamaria de o desdobramento de traumatropos nas sociedades pós-conflito, questionando a mutabilidade da forma e do status de "verdade" nos traços neoliberais dos projetos de justiça transicionais. Se o trabalho em torno da memória já foi concebido como uma prática de oposição ao poder hegemônico, de que maneiras esse trabalho foi codificado, institucionalizado ou inscrito em geral com interpretações hegemônicas de passados recentes? Que alternativas ou novas estratégias para produzir e contar a verdade esses projetos de justiça transicional colocaram em movimento? De que forma a "curvatura" da memória mudou à medida que as exigências dos ativistas foram parcialmente incorporadas em regimes de governança neoliberal — muitas vezes por meio das próprias CVRs? De que maneiras esses processos moldaram os cenários sociais, culturais e políticos nas sociedades pós-guerra e pós-ditadura? Quais são os legados dos extensos arquivos de evidência que esses processos geraram?
A Comissão de Verdade e Reconciliação (CVR) do Peru proporciona um espaço agudo de reflexão em torno dessas perguntas. Os oito anos que se seguiram à finalização do relatório da CVR em 2003 ilustram de maneira vívida as dinâmicas de constante produção e erosão da verdade na esfera pública. Em sua análise da célebre exposição fotográfica sobre a CVR, Yuyanapaq, Deborah Poole e Isaías Rojas investigam maneiras em que as fotografias, que a princípio funcionaram como evidência na reconstrução de eventos históricos, adquiriram outra densidade crítica ao serem reconstituídas como uma exposição pública que interpelou os visitantes como sujeitos explicitamente nacionalizados. Yuyanapaq provoca os visitantes a verem imagens, muitas delas conhecidas, como se fosse pela primeira vez — e pela primeira vez como sujeitos nacionais reconstituídos pós-CVR. A exposição amplia um processo característico de muitas CVRs, onde o testemunho de cada vítima é encenado de modo a permitir à nação ouvir uma história brutal da qual foi participante como se fosse a primeira vez. Dessa vez, no entanto, é possível articular uma forma diferente, e talvez reconciliatória, de se ouvir e de se ver. María Eugenia Ulfe e Cynthia Milton seguem o destino dessa mesma exposição desde a sua primeira versão durante dois anos na Casa Rivera Argüero em Lima até a sua controversa mudança para uma exibição temporária no Museu Nacional do Peru: nesses dois curtos anos, a proposta da exibição de estabelecer uma história nacional reconciliatória já havia se desgastado, à medida que muitas figuras da direita acusaram a exibição de ser tendenciosa a favor da esquerda — uma crítica que não poderia ser desvinculada dos esforços concomitantes para processar oficiais militares por crimes contra os direitos humanos perpetuados durante o conflito. Os debates subsequentes sobre a exposição como um lugar de memória nacional ilustram as temporalidades mutáveis associadas com o projeto da verdade: a CVR apresentou suas conclusões sob o imperativo “nunca mais” — daí o seu epitáfio: “um país que não conhece a sua história está fadada a repeti-la” —; mesmo assim, a direita colocou um limite de cinco anos para a permanência da exposição no Museu Nacional e — como a análise de Ulfe e Milton revela — a princípio rechaçou completamente uma oferta do governo alemão de financiar um museu da memória permanente. O que significa, elas perguntam, que o lugar escolhido no final das contas para abrigar essas memórias foi um antigo aterro sanitário — abrigando os dejetos das próprias classes dominantes de Lima que permaneceram apáticas enquanto o conflito estourava nos Andes?
Como fundador e diretor da Equipe Peruana de Antropologia Forense (EPAF), José Pablo Baraybar e o seu projeto na vila Andina de Putis, local de um massacre de 123 civis em 1984, proporcionam uma reflexão crítica sobre a capacidade do projeto da CVR de produzir a verdade através da reconciliação nacional. Ilustrado no multimedio “Perú es Putis”, a EPAF, por um lado, continuou a trabalhar na linha da CVR, escavando valas comuns, identificando vítimas com a ajuda de familiares, e supervisionando funerais coletivos, todas ações que fizeram parte do processo das CVRs. Ao contrário da CVR, no entanto, o trabalho da EPAF continua sendo profundamente material, recusando o gesto de converter qualquer escavação ou enterro específico em uma metonímia para a nação como um todo. O trabalho de tirar o pó de ossos, alinhar pequenas vértebras, de conectar “este dente com aquele sorriso”, é em si o trabalho da reconstrução pós-guerra. De maneira semelhante, os projetos fotográficos de Domingo Giribaldi del Mar e Marina García Burgos em Putis, oferecem um contraponto à interpelação nacional de Yuyanapaq; seu trabalho de memória, como o da EPAF, centra-se profundamente nos restos mortais do conflito: o pequeno suéter — “a trama, a linha, os pontos e as costuras” — resgatado da vala comum, que tenha talvez permitido a uma mãe identificar o seu filho perdido; as caixas de papelão cuidadosamente empilhadas, cheias de ossos, alinhadas contra a parede de um escritório, esperando sua última jornada para um túmulo identificado.
Atrás/depois da verdade busca desestabilizar os resultados dos processos de justiça transicional, e repensar o saldo (“aftermath”) dos restos e resíduos que permanecem uma vez entregues os informes, apresentados os relatórios e pronunciados os vereditos simbólicos. No nosso dossiê “contra-memória”, Elizabeth Jelin examina esse tipo de contabilidade tardia através do caso do Memorial dos Homossexuais Perseguidos pelo Regime Socialista Nacional em Berlim, um memorial acrescentado muito tempo depois da criação do bem mais famoso Memorial dos Judeus Assassinados na Europa. Até mesmo a localização do segundo memorial é próxima mas adjunta ao primeiro: o que isso nos diz sobre a arquitetura mutável da memória ao longo de arcos temporais mais longos? Esteban Paulón, líder da Federação Argentina LGBT, descreve o sucesso da campanha pela igualdade no casamento, enfatizando a influência das lutas transicionais na África do Sul depois do Apartheid, e apontando a possibilidade de distintas temporalidades na busca por justiça social em sociedades pós-transicionais. Diane Nelson, por sua vez, traça os contornos do traumatropo velado da clandestinidade na Guatemala pós-guerra, onde certos processos e experiências políticas parecem estar permanentemente condenadas ao silêncio, um silêncio “tão profundamente assimilado que o próprio corpo não deixa que se fale”.
A antropóloga Clara Han nos convida a pensar sobre a memória como “experimentos para se chegar no presente”, ao invés de processos de significação, hegemônica ou não, de eventos passados. Diana Taylor nos conduz pela árdua jornada de Pedro Matta em direção ao seu próprio presente através de suas visitas guiadas por Villa Grimaldi, um antigo campo de tortura e extermínio em Santiago do Chile. Taylor se pergunta o que os movimentos repetidos de Matta pelo local — que representam tanto atos de comemoração e rituais de cura quanto trauma-turismo — podem nos dizer sobre as afinidades críticas entre trauma e performance. No seu ensaio, por outro lado, Allen Feldman aponta diretamente para o próprio calculo da responsabilidade e a lógica do trauma individualizado que operam no projeto sul-africano de justiça transicional, ambos, segundo ele, mascarando a racialização inerente da violência estatal. Isso leva a uma crítica mais ampla da performatividade da violência política e dos modos pelos quais ela exige (ao invés de resistir) a “traumatropologia” humanitária liberal que associa a identificação das vítimas com a produtividade e o controle.
Poderíamos descrever o “depois da verdade” como uma espécie de “pós-verdade”, um resíduo fantasmagórico semelhante à persistência retiniana no momento de escuridão que encerra a obra de Alfredo Jaar, La geometria de la conciencia? Vários dos artigos deste número investigam o trabalho das artes visuais na produção dessas pós-verdades. Apresentada aqui como um multimedio interativo, a instalação de Jaar para o Museu Nacional da Memória e Direitos Humanos opera por meio de contrastes drásticos de luz e escuridão que iluminam a geometria complexa — ou o traumatropo — da nossa memória. As icônicas fotos em preto e branco das carteiras de identidade nacionais, tantas vezes usadas por ativistas pelos direitos humanos para defender e provar a existência dos desaparecidos, são transformadas aqui em uma parede de silhuetas escuras, retroiluminadas por uma brilhante luz branca. No trabalho de Jaar, porém, apenas metade das silhuetas dos retratos pertencem a cidadãos chilenos que foram desaparecidos durante o regime militar, enquanto as outras silhuetas foram traçadas a partir de retratos de chilenos vivos tirados nas ruas de Santiago, indistinguíveis dos retratos dos desaparecidos. La geometría de la conciencia, nas palavras de Adriana Valdés, “é a construção conjunta do futuro que está pendente, e não só o lamento pelo passado”
O trabalho magistral de Jaar com essas imagens é um exemplo da tendência analisada por Andrea Giunta em seu ensaio, que explora o destino de fotografias ou imagens evidenciais quando transferidas para o registro artístico, um gesto comum em muita da arte da pós-ditadura na América Latina. Como a arte pode desatar outros significados daquelas imagens cuja eficácia está selada no seu papel de evidência ou de ícone político, oferecendo a elas uma espécie de sobrevida política e estética? A obra do artista nicaraguense Ernesto Salmerón, investigada aqui por Carla Macchiavello, proporciona um caso perfeito para refletir sobre essas perguntas. Em sua obra de 2006, Auras de guerra, Salmerón utiliza literalmente restos de guerra — um muro com grafite sandinista, que foi carregado em um caminhão da IFA usado para transportar soldados para o campo de batalha, e dois ex-combatentes, um de cada lado da guerra — para teatricalizar o real e revelar as ficções que preservam a relação entre esses restos. Os dois combatentes, hoje dois veteranos desempregados, se “reconciliam” não por meio de um processo político, mas sim como representantes e guardas pagos por um projeto artístico na Bienal de Veneza. Giunta sustenta que a ativação desses restos icônicos dentro do campo da arte os conecta à incompletude da própria arte, abrindo-os portanto à “natureza sempre pendente das demandas sociais e políticas”, que pode servir para desestabilizar a calcificação da memória social.
Finalmente, Marita Sturken nos oferece o exemplo de Emily Prince, cuja extensa obra “Homens e Mulheres Estadunidenses que Morreram no Iraque e no Afeganistão (Mas não Incluindo os Feridos, Nem os Iraquianos e Nem os Afegãos) (de 2004 até o presente)” consiste de um catálogo geográfico em constante expansão de soldados estadunidenses que continuam morrendo nas nossas guerras atuais. Ao colocar um pequeno retrato de cada militar perto de sua cidade natal, ela cria um catálogo visual — um arquivo e um mapa — dos mortos. Ao invés de reproduzir essas fotografias, Prince desenha à mão uma réplica de cada fotografia, insistindo no trabalho do desenho e na dificuldade de reproduzir uma vida perdida. Sturken denomina esse processo o “trabalho da memória”, ecoando o trabalho de Elizabeth Jelin e de outros estudiosos da memória na América Latina. É precisamente através desses trabalhos — o fino labor de Prince, Salmerón, Jaar, Matta, e @s outr@s representados aqui — que aprendemos também sobre o trabalho contínuo de relembrar a partir dos saldos e das repercussões da verdade. Convidamos vocês a participar desse trabalho.
Traduzido por Marcos Steuernagel
Memories of Reconciliation: Photography and Memory in Postwar Peru
Deborah Poole and Isaías Rojas Pérez
Politics of Representation. Art & Human Rights
Andrea Giunta
Traumatizing the Truth Commission:Amnesty, Intentionalist Teleology, and the Event
Allen Feldman
The Power of Pink: Performing the Archive in the Works of Ernesto Salmerón
Carla Macchiavello
¿Y, después de la verdad? El espacio público y las luchas por la memoria en la post CVR, Perú
María Eugenia Ulfe and Cynthia Milton
Trauma, memoria y performance: Un recorrido por Villa Grimaldi con Pedro Matta
Diana Taylor
Means and End/s of Clandestine Life
Diane Nelson
Depths of the Present: State Violence and the Neoliberal State
Clara Han
The Nation Gathers
Naomi Angel
El tumulto de las fronteras
Nelly Richard
¿Espacios para la memoria? ¿Para quiénes?
Elizabeth Jelin
Ni más ni menos. Los mismos derechos, con los mismos nombres: 2010, año de la igualdad en Argentina
Esteban Paulón
Chile’s MarchaRearme and the Politics of Counter-Commemoration
Katherine Hite
Apuntes fotográficos de posdictadura
Natalia Fortuny
Mozambique: Reconciliation without "Truth"
Juan Obarrio
Still Waiting
Jo-Marie Burt
Seeing, Counting, Taking Time: Memory and the Iraq War
Marita Sturken
la geometría de la conciencia
Alfredo Jaar
Against the Grain: Cultural Politics After Peru's Troubled Times
Macarena Gómez-Barris
Marina Abramović’s Time: The Artist is Present at the Museum of Modern Art
Abigail Levine
Contextualizing Truth: Recent Contributions to Discourses of Reconciliation in Canada
Naomi Angel
Desmemoria y Perversión: privatizar lo público, mediatizar lo íntimo, administrar lo privado by Fernando A. Blanco
Isabel Baboun Garib
Reckoning with Pinochet: The Memory Question in Democratic Chile, 1989-2006 by Steve J. Stern
Patrick Blaine
Trans Desire by Micha Cárdenas
Zach Blas
El siluetazo, edited by Ana Longoni and Gustavo Bruzzone
Celina Fassi Cardoso
Crítica de la memoria: 1990-2010 by Nelly Richard
Jean Franco
On Art, Artists, Latin America, and Other Utopias by Luis Camnitzer
Antonia Garcia Orozco
Performing South Africa’s Truth Commission: Stages of Transition by Catherine M. Cole
Robyn Green
The President Electric: Ronald Reagan and the Politics of Performance by Timothy Raphael
Angela Marino Segura
Where memory dwells: Culture and state Violence in Chile by Macarena Gómez-Barris
Kaitlin McNally-Murphy
Prismas de la memoria: narración y trauma en la transición chilena by Michael J. Lazzara
Judith Sierra-Rivera
Telling Ruins in Latin America, edited by Michael J. Lazzara and Vicky Unruh
Tamara Lea Spira
Memoria en construcción: el debate sobre la Esma, edited by Marcelo Brodsky
Yael Zaliasnik Schilkrut
¿Patria o muerte? by Pablo Ramírez
Reinaldo Amién Gutiérrez
Halcón de Oro Qorihuaman by Rodolfo Rodríguez and Raúl Cisneros
Ivone Barriga
The smell of Popcorn by Teatro iati and World Players, Inc.
Li Cornfeld
Cimientos Performance Workshop and Symposium
Tara Daly
Blackwaters by Matthew B. Jenkins
Adriana Pilar Nieto
Solo with Variations 2 (For Vladimir Ilich L.) by Nelson Rivera / Mizery
Lilliana Ramos Collado
Fernando Pertuz
Miguel Rojas-Sotelo
Situación de Colombia by Teatro Efímero Putumayo
Paloma Salgado Jiménez
Mi vida después
Cecilia Sosa
Vidas paralelas
Cynthia E. Milton
Felandus Thames
Charlie Samuya Veric